Contos

O segredo de Rosália

Luiz dos Santos Preza


Rosália enviara mensagem me convidando para passar o final de semana em sua casa. Percebi que ela queria muito conversar, talvez fazer um desabafo, acalentar a angústia que provavelmente rondava seu espírito desde a morte de Ronaldo, seu marido, vítima recente de um infarto fulminante.
Rosália disse que gostava muito de mim, “a prima predileta e eterna confidente” - poderíamos tomar um vinho, e você me faria companhia esses dias. Ficaria muito grata se me fizesse essa gentileza – ela me disse.
– Sim, querida. Claro - respondi-lhe.
Anoitecia quando interfonei para o apartamento de Rosália.
Minha prima sempre se destacou como mulher de grande beleza e altivez. Apesar de sua idade, o corpo se mantinha esguio e os traços no rosto discretos.
Logo percebi uma atmosfera estranha no ar, além do luto em si. Rosália me recebera com dois beijinhos, um sorriso farsesco e um sopro leve e quente de álcool.
- Sei que posso estar incomodando, mas preciso de um alento, e confio em você.
Antes de sentarmos no sofá, ela me ofereceu uma bebida. Eu agradeci, mas recusei – daqui a pouco. Disse-lhe que a família estava consternada, e que eu faria o que tivesse ao meu alcance para confortá-la. Alguns minutos depois, conduziu-me à copa, lugar que ela considerava o mais agradável da casa. Bebemos um pouco mais que uma garrafa de vinho, mas logo fomos dormir. Pouco falamos sobre a morte de Ronaldo.
Na manhã de sábado, encontrei a mesa posta no mesmo recanto aconchegante. A luz natural atravessava as amplas janelas envidraçadas. Rosália pôs à mesa um perfumado e delicioso café da manh㠖 a toalha gravada com flores-da-esperança.
- Vou te contar uma intimidade – disse-me Rosália, descendo levemente as pálpebras e a cabeça - Muitas manhãs, antes do desjejum, eu e ele fazíamos amor aqui. Era maravilhoso sentir todo aquele êxtase...
Ao descerrar os olhos, que fugira dos meus, Rosália tentava abafar os ecos do passado sob artifícios corporais. Corrigiu a alça da camisola, pendida do ombro, e desviou o rumo da conversa - Vamos ao Centro? Preciso fazer umas compras. Depois poderíamos aproveitar para almoçar por lá mesmo. Que tal na confeitaria?
- Há muito não almoço na confeitaria. Adoraria - respondi francamente. E fomos nos arrumar.
Saímos. O sol já ardia sobre o asfalto e seu bafo fazia tremer o horizonte, ao longe, diante do para-brisas do carro de minha prima. Chegamos ao Centro, ainda cedo.
Trazíamos sacolas de compras quando entramos na confeitaria. Não havia tantos fregueses como nos dias úteis. O metre veio nos oferecer uma mesa. Escolhemos uma bem próxima ao piano. O ambiente nos envolvia sob o som de uma bossa nova. Rosália havia comprado uma camisola branca, com um detalhe em renda próximo ao busto. Muito bonita. Depois de guardá-la, ela chamou o garçom e pediu o cardápio e um suco de laranja, no que a acompanhei. Escolhemos e pedimos os pratos ao garçom e voltamos a conversar.
- Você sabia que Ronaldo e eu gostávamos de caminhar pelo Centro do Rio de Janeiro nos finais de semana? Fazíamos desse programa quase uma rotina. Gostávamos de percorrer as ruas vazias pela manhã, quando então o Centro parecia dar lugar a um outro espaço, muito diferente daquele agitado pelos dias úteis. Como era maravilhosa nossa andança, desde as igrejas barrocas da Praça XV, passando pela Rua Visconde de Inhaúma, até encontrarmos a Igreja de Santa Rita de Cássia, logo após à Avenida Rio Branco. Nessa igreja do século XVIII, podíamos apreciar a simplicidade do rococó que chegara ao Brasil. Continuávamos a caminhada junto aos antigos prédios, sentindo a solidez da pedraria e a altivez dos monumentos, livre do fluxo ininterrupto dos carros e das pessoas na luta do dia-a-dia. Aqui onde estamos era o destino desse profilático trajeto, complementado por um maravilhoso almoço – saudava Rosália, enquanto bebericava seu suco de laranja.
Terminamos o almoço. Rosália reafirmou sua estima por mim e, por isso, me confiaria um segredo.
- Você sabe como fui criada. Seus tios me impuseram uma disciplina rígida, segundo princípios de educação e moral – disse-me com um olhar descomedido.
- Prima, tenho certeza que só queriam proteger sua única filha.
- Mas esse excesso de proteção pode limitar as experiências com que aprendemos as coisas do mundo – retrucou - é que a verdade não escolhe hora para nos confrontar com a realidade. E aí, pode nos surpreender despreparados para enfrentá-la, e quando surge diante de nós às vezes emerge da forma mais cruel possível, trazendo profunda desilusão - concluiu.
- Pode falar comigo, prima. Você está me assustando.
- Acho que você conhece o Francisco, amigo e sócio do Ronaldo.
- Claro. Já nos encontramos inúmeras vezes, ele e a esposa. A última fora no velório do Ronaldo.
É verdade, no velório... Pois foi naquele dia que Francisco me fez conhecer uma verdade desconcertante, pavorosa – disse-me Rosália com os olhos verdes encharcados. E prosseguiu. - Perdoe-me se lhe assusto. - Rosália tentou me tranquilizar - Na noite do velório, Francisco pediu-me para acompanhá-lo até um lugar reservado porque queria conversar comigo. Jamais eu poderia imaginar que estava prestes a sofrer o golpe mais rude de toda minha vida. Conversamos durante uns 20 minutos, até minhas pernas derreterem como hastes de plástico sob calor intenso. Meu deus! Ao ouvir aquelas palavras, parecia que uma forte descarga elétrica percorrera por todo o meu corpo. O homem a quem minha felicidade eu entregara cegamente não passava na verdade de um desconhecido que viria roubar meu prazer de viver, a partir daquele momento. Como ele pôde esconder um fato tão grave e por tanto tempo? Depois de quase perder minha consciência, ao amparo de meu algoz, exigi que, por respeito a mim e minha família, Francisco me prometesse discrição absoluta, pois se a justiça dos homens e mesmo a justiça divina viessem em nosso socorro não seria por minha iniciativa nem dele - disse Rosália com os olhos afogados por sentimentos conflitantes.
Rosália prosseguiu dizendo que não estava mais suportando carregar consigo o peso daquela terrível revelação. Era preciso compartilhá-la com alguém em que tivesse total confiança. Por isso recorrera a mim.
- Apenas lhe peço segredo absoluto, e que de forma alguma comente com mais ninguém sem minha autorização, pois se as consequências dessa revelação vierem a público trariam a todos um enorme desgosto. Posso contar com você mais uma vez? – concluiu Rosália com um ar amargurado e ameaçador.
- Sim, prima – respondi-lhe consciente do peso da responsabilidade que me cabia de agora em diante. Eu tentei me controlar. Sabia que Ronaldo fora o único namorado de Rosália e, logo, o grande amor de sua vida.
- Você sabe, minha prima, ele foi a pessoa com quem dividi a cama por trinta felizes anos e que me dera duas filhas lindas e um neto maravilhoso. Ronaldo conhecia cada centímetro do meu corpo, tinha cada pedacinho de mim mapeado em sua memória.
Com lábios trêmulos e olhos marejados, Rosália me fez jurar lealdade novamente.
- Pode acreditar em mim. Jamais trairia sua confiança, pois não quero colocar termo a nossa amizade – disse-lhe.
- Obrigado por tudo, e por você ser não apenas minha prima, mas irmã e amiga generosa.
Rosália fez questão de pagar a conta.
- Crédito ou débito, senhora? – perguntou o garçom a Rosália.
- Débito, por favor, não quero ficar devendo nada a ninguém.
Eram dezesseis horas e quarenta e cinco minutos quando saímos da confeitaria. Voltamos pra casa de Rosália. Fui ao toilette e quando voltei as compras tinham sido retiradas das sacolas e colocadas sobre o sofá. Rosália segurava a camisola nova e conversava com ela, como se estivesse só. Mas, de súbito, ela percebeu minha presença. Uma garrafa de vinho e duas taças já estavam sobre a mesinha de centro. Bebemos um pouco mais.
- Vamos dormir? – perguntou-me Rosália.
Indaguei se estava bem. Rosália esboçou um sorriso que claramente não combinava com seu interior.
- Vamos, querida! Só lhe peço perdão por minha fraqueza. Só agora percebo a covardia de que fui capaz ao dividir meu fardo com você. Dói muito pensar que lhe magoei – com o dorso da mão carinhosamente deslizando sobre meu rosto, Rosália mostrava-se arrependida pela revelação e a responsabilidade que acreditava me impusera.
- De forma alguma, prima! Como eu poderia ficar magoada pela prova de confiança que você me deu? Quanto à responsabilidade, preocupa-me apenas seu bem-estar. Despedimo-nos e fomos dormir.
As imagens da expressão desoladora de Rosália na confeitaria ao me contar o que a assombrava não paravam de frequentar meus pensamentos. Contudo, o vinho me ajudou a relaxar, e assim consegui dormir.
No dia seguinte, decidimos almoçar num restaurante próximo à casa de Rosália. Nas redondezas havia restaurantes muito agradáveis, principalmente aos domingos. Rosália parecia mais tranquila, aliviada do peso que até então carregava sozinha.
- Mais tarde vou ao salão no shopping cortar o cabelo e fazer as unhas – disse Rosália.
Embora tenha achado insólita uma visita ao cabelereiro naquele dia, ofereci-me para acompanhá-la, mas ela respondeu que eu já tinha sido muito solidária e que não gostaria de abusar mais da minha companhia, afinal amanhã era dia de trabalho.
Após almoçarmos, retornamos à casa de Rosália para eu pegar minhas coisas. Abraçamo-nos afetuosamente. Ela insistiu me alertando sobre o sigilo de nossa conversa. Eu respondi dizendo que ficasse tranquila.
O outono sacudia a folhagem seca das árvores. Era o final de uma tarde cinzenta de domingo. Ainda ventava um pouco, o suficiente para revolver as cortinas nas janelas. Escurecera, e luzes eram acesas dentro dos lares. Rosália permanecia em minha cabeça.
Segunda-feira, logo cedo, recebi o telefonema de Vânia, a filha mais velha de Rosália. Imediatamente fui para o apartamento de minha prima. A perícia já havia feito seu trabalho. O delegado perguntou se eu poderia comparecer à delegacia. Jurandir, porteiro do prédio, tinha dito a eles que eu passara o final de semana na casa dela.
Rosália estava coberta por um plástico preto. Perguntei se poderia vê-la. Ela vestia a camisola que compramos sábado. A corda ainda pendurada no ventilador de teto. O banco trazido da cozinha, caído ao chão. Ao lado da pia, por lavar, as xícaras de café usadas no domingo. Numa poltrona, um livro de arte aberto numa página marcada com uma pena – “O Grito”, de Munch. Caminhei lentamente em direção à janela. Lá fora, as elevações e prédios se alternavam até quase o horizonte. Algumas nuvens cor de chumbo despejavam água sobre a paisagem urbana.

 

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